terça-feira, 26 de outubro de 2021

A FILOSOFIA DE LAO TSE

 Comentário de Wu-ming (1947-


“Seleção é exclusão; instrução é omissão: o Tao não exclui nem omite nada.”
Shen-Tao


TAO (CAMINHO, PRINCÍPIO, LEI, VERDADE, REALIDADE)
CH’ANG (IMUTÁVEL, INVARÍAVEL, CONSTANTE, PERMANENTE, ETERNO)
O ideograma tao desempenhou um papel fundamental na formação do pensamento da China Antiga e tinha, originariamente, o significado de caminho ou estrada. Partindo deste significado simples, o ideograma assumiu, ainda na Antigüidade, o sentido metafórico de “caminho do homem”. Assim, o caminho (tao) de Kung-Tse (Confúcio) era o ritual (li); o caminho (tao) de Mo-Tse, o utilitarismo (li) e o caminho (tao) de Mêng Tse, a moralidade (i).

Já no Lao-tse, o ideograma tao expressa uma idéia metafísica, totalmente nova em relação ao homem comum, que significa o “caminho imutável”. O sentido metafísico do ideograma tao provém de sua associação com o ideograma ch’ang. O ideograma ch’ang abrange os conceitos de imutável, invariável, constante, permanente, absoluto e eterno; e de sua associação com o ideograma tao surgiu o conceito “Caminho Imutável”,ou Ch’ang Tao, conceito central na filosofia de Lao-Tse.

Talvez seja por causa da grande importância que o ideograma tao - do qual o Taoísmo extraiu seu nome – desempenhou na formação cultural da China Antiga, que os filólogos e sinólogos ocidentais sempre se concentraram no estudo exaustivo desse ideograma, deixando em segundo plano o ideograma que de fato contém a primeira chave para interpretar corretamente o texto do Lao-tse. O ideograma ch’ang é precisamente o conceito que diferencia o caminho de Lao-Tse do caminho dos outros pensadores da época. Enquanto cada um dos principais mestres da China Antiga proclamava ensinar o melhor “caminho dos homens”, Lao-Tse ensinava o Ch'ang Tao ou “Caminho Imutável". Assim, o primeiro passo para interpretar o texto do Lao-tse é tentar entender o conceito “Caminho Imutável”.

O “Caminho Imutável” se opõe ao “caminho mutável” e contém implícita a primeira antítese do texto: imutável/mutável . A mutação (I) é a principal qualidade das “dez mil coisas”; isto é, do mundo manifestado, e objeto de estudo do mais importante livro da China: o I Ching ou Clássico das Mutações. O princípio da mutação determina uma outra qualidade fundamental das "dez mil coisas": a impermanência. Isto significa que as "as dez mil coisas" estão determinadas pela mutabilidade e pela impermanência; ou seja, pelo que hoje definimos como coordenadas espaço-tempo. Desta mesma forma, os inúmeros caminhos (Tao) ensinados e seguidos pelos mais de trezentos sábios da Antiga China eram mutáveis e impermanentes, e por conseguinte, condenados ao fracasso. É nesse período, entre 350 e 250 a.C., quando Lao-Tse, cansado de tantos sábios e tantos caminhos que não conseguiam tirar a China do caos, concebe uma ideia inconcebível naquela época: a ideia de um caminho (Tao) imutável e permanente (Ch'ang) que pelas suas características transcende as dimensões espaço-tempo e, conseqüentemente se origina no plano metafísico. Um caminho imutável e permanente; ou seja, perfeito e eterno é, por definição, incognoscível; isto é, não pode ser objeto do conhecimento porque transcende o plano do espaço-tempo, que são as duas coordenadas percebidas pelo intelecto. E é justamente por ser incognoscível que o caminho não pode ser caminhado nem o nome ser pronunciado. É isso que significam os primeiros quatro versos do Tao Te Ching.

O caminho (tao) que pode ser caminhado
não é o Caminho Imutável (Ch’ang Tao).
O nome que pode ser nomeado (ming)
Não é o Nome Imutável (Ch’ang Ming)...
(Capítulo I)


Enquanto ainda não se manifesta pertence ao plano da não –existência (wu) e assim só podemos intuir ou pressentir a sua existência. Seria, pois, um pressentimento.

Quando podemos dar-lhe um nome (ming) é quando podemos perceber sua existência (yu) ; ou seja, sua essência (miao) se manifestou através das infinitas coisas. O primeiro par de opostos a aparecer no mundo manifestado, segundo o Tao Te Ching, foi Céu e Terra. A partir daí apareceram todos os outros nomes que constituem as infinitas coisas. Existia na China Antiga a idéia de que as coisas só existiam quando recebiam um nome. Por isso, a idéia de um caminho sem nome (wu-ming)era uma idéia mística.

Do que não tem nome surgiram “Céu e Terra”,
e dos nomes surgiram as dez mil coisas...
(Capítulo I)


Enquanto não se manifesta é incognoscível, pois pertence ao plano da não-existência (wu) :

Aquilo que olhamos e não conseguimos ver,
pois é invisível.
Aquilo que escutamos e não conseguimos ouvir,
Pois é o inaudível.
Aquilo que tocamos e não conseguimos sentir,
Pois é o intangível....
(Capítulo XIV)


Por ser incognoscível, sua essência (miao) só pode ser pressentida:

Os sinais do Poder (Te) provêm do Caminho (Tao).
O Caminho é invisível e intangível.
Invisível e intangível, mas dentro dele estão contidas as formas.
 Invisível e intangível, mas dentro dele estão contidas as coisas.
Profundo e obscuro, mas dentro dele está contida a essência (ching).
A essência é real e dela temos evidências, pois desde os
tempos mais remotos suas manifestações nunca cessaram e é
através delas que podemos pressentir a origem das dez mil coisas.
Como posso pressentir a origem das dez mil coisas?
Justamente através disto!
(Capítulo XXI)


Porém, quando se manifesta e entra no plano da existência (yu-yu) sua essência(chiao), até então pressentida, se torna cognoscível.

...Quando não existe (wu) pressentimos sua essência (miao);
e quando existe (yu) vemos sua aparência (chiao)...
(Capítulo I)


Ambos, a não-existência (wu) e a existência (yu) são os dois aspectos antitéticos do Caminho Imutável/Mutável; porém, de onde surgiu a não-existência é um mistério para a mente humana.

Ambos tem a mesma origem,
mas diferem no nome.
O mais obscuro mistério (hsuan),
é esse o portal (chiao) de onde surgiu a essência (miao).
(Capítulo I)


Uma outra questão diz respeito à energia do Caminho Imutável. Enquanto essa energia vital emana do Caminho Imutável, que é impessoal, permanece inesgotável, e portanto não se exaure; porém quando essa energia vital (ch'i) se individualiza através do homem comum ela se exaure. Além de inesgotável, de tão profunda é insondável. De acordo com a descrição de Lao Tse, a ação do Ch'ang Tao é mística e metafísica ao mesmo tempo, pois, além de ser um completo mistério, é incognoscível. Quando queremos remontar suas pegadas descobrimos que não tem origem, pois é anterior à própria origem. É interessante notar que aqui Lao Tse sugere um conceito desenvolvido pelo Budismo, que é ausência de origem. O Imperador Ancestral, segundo a tradição, foi o criador da civilização chinesa, isto é, a origem da China, portanto, o que é anterior ao Imperador Ancestral é anterior à origem; ou seja sem origem.

O Caminho parece vazio (hsu) como o interior de um vaso;
mas seu uso (yung) é inesgotável.
Insondável, talvez o antepassado das dez mil coisas.
Apara as arestas;
desata os nos;
suaviza a luz;
se torna um com a poeira .
Profundo e sereno, parece constante.
Não sei de quem possa ser filho.
Parece anterior ao Imperador Ancestral.
(Capítulo IV)


Há uma coisa indiferenciada, porem completa, anterior a “Céu e Terra”.
Silenciosa e sem forma, não depende de nada e é imutável,
opera em toda parte e está livre do perigo.
Pode ser considerada a Mãe das dez mil coisas...
(Capítulo XXV)


No texto, “Caminho”, “Caminho do Céu”, “Caminho Antigo” e “Mãe” são sinônimos do mesmo princípio.

TE (PODER, VIRTUDE)
O ideograma Te, traduzido freqüentemente como virtude, se remonta, segundo a tradição, à época legendária do começo da civilização chinesa, pois esse era o atributo necessário para que o soberano fosse indicado pelo Céu (T’ien) para o trono. No Livro da História (Shu-Ching), no Cânone de Shun o último imperador legendário, que sucedeu ao imperador Yao em 2255 a.C., diz: “O relato de sua virtude misteriosa (hsuan-te) foi ouvido das alturas, e por isso foi indicado para o trono.”

Já no texto do Lao-tse, o ideograma Te é usado também no sentido de poder, mas como está sempre associado ao ideograma Chang adquire o significado de “Poder Imutável” (Ch’ang Te). Assim, tal como acontece com o ideograma Tao, ao se associar com o ideograma Ch’ang, o ideograma Te adquire uma conotação metafísica. O Poder Imutável ou Ch’ang Te é um poder que transcende o plano "das dez mil coisas". Não somente transcende o plano "das dez mil coisas" como transcende o plano de "Cèu e Terra"; ou seja, é anterior ao Imperador Ancestral e assim como o Ch'ang Tao pertence ao plano metafísico. Por isso, o Poder Imutável é também chamado de Poder Misterioso (Hsuan-Te). Segundo a descrição do texto, o Poder Imutável confere ao sábio poderes sobre-humanos provenientes do Caminho Imutável. Mas, o caminho para adquirir esses poderes sobre-humanos é sempre o retorno ao Caminho Imutável (Ch’ang Tao).

Os sinais do Poder (Te) provém do Caminho (Tao)...
(Capítulo XXI)


...Alimenta e nutre;
produz sem se apropriar;
dá sem exigir retribuição;
guia sem comandar.
Esse é o “Poder Misterioso” (Hsüan-Te).
(Capítulo X)


...Aquele que acumulou o Poder (Te) pode vencer qualquer obstáculo.
Aquele que vence qualquer obstáculo não conhece limites.
Aquele que não conhece limites está apto para governar o Império...
(Capítulo LIX)


WU (NÃO, AUSÊNCIA, SEM, SEM INTENÇÃO, NÃO-EXISTÊNCIA)
No Taoismo e no Budismo Ch’an o ideograma wu é tão importante quanto o ideograma tao. Wu é, em primeiro lugar, uma forma negativa que quando antecede um nome significa a negação ou a ausência do objeto nomeado. Além da função de negação, o termo wu é usado no sentido de não-existência ou não-ser e, com o passar do tempo, transformou-se num dos mais importantes paradoxos (kung-an) do Budismo Ch’an (Zen). Quando um discípulo perguntou ao mestre Chou-Chou (778-897), da dinastia Tang, se o cachorro tinha a natureza de Buda, ele respondeu: “Wu!” Nesse instante o discípulo se iluminou. Por isso, no Budismo Ch’an o termo wu também significa o despertar do discípulo.

No Lao-tse, além de não-existência, wu também significa ausência ou negação e aparece sempre associado aos três atributos do Caminho Imutável: wu ming (sem nomes), wu-wei (sem ações), e wu yu (sem desejos). A alquimia interior de Lao Tse trata do método de desenvolvimento desses três atributos através dos quais o alquimista interior, depois de um longo processo transcende os nomes (wu ming), transcende às ações (wu wei) e transcende os desejos (wu-yu),  tornando-se  igual ao Caminho Imutável (Cháng Tao). E quando o alquimista interior alcança esse grau de desenvolvimento significa que alcançou os atributos do Tao e os poderes do Te.

O Caminho Imutável não tem nome (wu-ming)...
(Capítulo XXXII)


...O Caminho Imutável não age (wu-wei), mas nada fica sem ser feito...
(Capítulo XXXVII)


...Sempre sem desejos (wu-yu) pode ser chamado de “Pequeno”.
As infinitas coisas retornam a ele, pode ser chamado de “Grande”...
(Capítulo XXXIV)


WU-MING (SEM NOME)

O ideograma wu-ming significa “sem nomes” e define o primeiro atributo do Caminho Imutável. O Caminho Imutável não pode ser nomeado; ou seja, é wu ming. E por que não pode ser nomeado? Porque se origina e atua no plano metafísico. Esse plano metafísico é anterior à matéria (wu-wu), e está além dos sentidos e além do intelecto. E, no entanto, sem falar nada (wu-ming), o Caminho Imutável (Ch'ang Tao) é capaz de gerar as infinitas coisas e de fazer com que tudo o que existe embaixo do Céu funcione com absoluta perfeição e no mais perfeito equilíbrio e harmonia.

O Caminho (Tao) Imutável (Ch’ang) não tem nome (wu-ming).
Embora a simplicidade da madeira bruta (p’u) possa parecer
insignificante, ninguém no mundo pode possuí-la .
Se Reis e Duques retornassem (fu) à simplicidade da madeira bruta (p’u)
as dez mil coisas sob o Céu se submeteriam naturalmente (tzu-jan)...
(Capítulo XXXII)


Mas por quê a ausência de nomes (wu-ming) seria o modelo ideal a ser seguido pelo Mestre, cujas funções eram, no plano institucional, aconselhar o Rei sobre a melhor maneira de reorganizar o Império, e no plano pessoal, conseguir desenvolver um método para que o Rei alcançasse a imortalidade? Para responder a essa pergunta devemo-nos transportar para aquela época. Em primeiro lugar, existia na China Antiga a ideia de que as coisas só existiam quando recebiam um nome. Desta forma, a elaboração dos nomes precedia à existência das coisas e quanto mais nomes mais coisas. Assim, Lao Tse atribuía o caos existente na China naquela época à proliferação dos nomes. Já Confúcio acreditava que o problema estava no desvio da nomenclatura original dos nomes; ou seja, os nomes não mais correspondiam às coisas que tinham designado originariamente, portanto, o que devia ser feito era a retificação dos nomes para que estes voltassem a ter seu significado original. Naturalmente, essa retificação dos "nomes" (cheng ming), referia-se ao sistema de governo, às instituições e aos rituais.

...Quando a madeira é talhada aparecem os nomes (ming).
Quando aparecem os nomes (ming) é hora de parar.
E é sabendo quando parar que não se corre mais perigo.
(Capítulo XXXII)


Em segundo lugar, era necessário tomar uma atitude radical em relação às mais de trezentas escolas filosóficas que proliferavam na China, cada qual com seu caminho (tao), e cujo resultado foi levar o país ao caos, pois a China na época de Lao Tse – Período dos Estados Combatentes (402-222 a.C.) - era um lugar onde existiam aproximadamente 10 Estados com centenas de senhores feudais que viviam permanentemente guerreando entre si e que tornavam a vida do chinês comum insuportável. Além disso, havia uma corrupção generalizada, enormes impostos e uma condição de absoluta opressão da classe trabalhadora. Assim, de acordo com Lao-Tse, a reorganização da China não poderia acontecer nem através da retificação dos nomes (cheng-ming) nem tampouco pelo princípio do utilitarismo (li) defendido por Mo-Tse, nem pela moralidade (i), pilar da doutrina de Meng-Tse. Radical como possa parecer, o caminho proposto por Lao Tse era um caminho totalmente oposto àqueles propostos pelas diferentes escolas filosóficas da época em geral e da escola confucionista em particular. Na verdade, a recomendação de Lao Tse para o sábio desenvolver o atributo “sem nomes” também representava uma crítica direta ao método do conhecimento adotado como princípio pela escola confucionista, já que Confúcio considerava “o conhecimento perto da sabedoria” e “admiráveis os trezentos princípios e as três mil regras de conduta (li)”. Assim, em apenas um capítulo, Lao-Tse critica Confúcio, Meng-Tse e Mo-Tse, três dos principais sábios de sua época, de uma penada só:

Livra-te dos conhecimentos, abandona a sabedoria
e os homens sairão beneficiados cem vezes.
Livra-te da benevolência (jen), abandona a moralidade (i)
e os homens retornarão à piedade filial (hsiao) e ao amor paterno.
Livra-te do utilitarismo (li) abandona a habilidade
e não haverá mais bandidos nem ladrões...
(Capítulo XIX)


Na verdade o atributo wu-ming não se referia apenas à necessidade de libertar a mente da tirania dos nomes escritos, mas também das palavras:

...As palavras são inúteis.
E melhor manter-se no interior (chung)
(Capítulo V)


...Como eram discretos aqueles soberanos antigos, mostrando
com seu silêncio o pouco valor das palavras!..
(Capítulo XVII)


Segundo a tradição Ch’an, a transmissão silenciosa do Darma começou quando Buda entrou no salão onde estavam reunidos todos os seus discípulos esperando um discurso de transmissão do Darma e, ao invés disso, o Iluminado pelo Mundo, sem dizer uma palavra, levantou uma flor, e de todos os discípulos apenas Mahakasyapa compreendeu o gesto respondendo com um largo sorriso. Através dos séculos, a prática da transmissão silenciosa (do Darma) fora das escrituras se transformaria na marca registrada da tradição Budista Ch’an.

Na alquimia interior de Lao-Tse, o princípio “sem nomes” (wu-ming) - isto é, o silêncio da palavra - é o primeiro atributo a ser desenvolvido pelo alquimista interior no caminho de retorno ao Caminho Imutável. Na prática, esse é o 1º estagio para alcançar a quietude completa (hsu) da mente e do coração.

WU-WEI (SEM AÇÕES)
O ideograma wu-wei significa “sem ações” e define o segundo atributo do Caminho Imutável. O Caminho Imutável não age; ou seja, é wu wei e, e no entanto nada fica sem ser feito. Portanto, essa é a segunda qualidade a ser desenvolvida pelo alquimista interior para retornar ao Caminho Imutável. Assim, o alquimista interior também deve praticar wu wei.

...Assim, o Mestre:
age (wei) sem agir (wu-wei)...
(Capítulo II)


É de se notar que Lao-Tse não propõe a inação, muito pelo contrário. O que ele sugere é uma intensa e rigorosa disciplina introspectiva, de forma a conseguir permanecer “sem ações” diante das inúmeras situações que nos apresenta a vida e assim não interferir no curso natural das coisas. E por que isso? Porque existe uma ordem superior e uma força maior que qualquer ação humana, o Caminho Imutável, que sem nenhuma ação aparente consegue que tudo se mantenha em perfeita ordem e equilíbrio, sem que nada deixe de ser feito. Qualquer interferência do ser humano seria imperfeita ou incompleta em relação à ação do Caminho Imutável. Ademais, as ações (wei) agitam a mente, impedindo que o adepto alcance o estado de quietude completa (hsu).

O Caminho (Tao) Imutável (Ch’ang) não age (wu-wei), mas nada fica sem ser feito.
(Capítulo XXXVII)


...Encher a vida até a borda é de mau agouro;
agitar o coração (hsin) leva-o à rigidez;
quando as coisas alcançam o apogeu começam a declinar.
Tais ações são contrárias ao Tao (Caminho)
e tudo que é contrário ao Tao morre cedo.
(Capítulo LV)


...Fecha a boca, tranca as portas e viverás sem decair até o
final dos teus dias.
Abre a boca, aumenta tuas tarefas e não haverá salvação até
o final dos teus dias.
Perceber o imperceptível, é iluminação.
Aderir à fraqueza, é fortaleza.
Aquele que conhece o brilho exterior, mas retorna (fu) ao
esclarecimento interior, se livra do perigo pelo resto de sua vida.
Isso se chama: “praticar o Imutável" (Ch’ang).
(Capítulo LII)


Na alquimia interior de Lao-Tse, a não-ação (wu-wei) - o silêncio da mente - é o segundo estagio no caminho de retorno ao Caminho Imutável. Na prática, esse é o 2º estagio para alcançar a quietude completa da mente e do coração (hsu).

WU-YU (SEM DESEJOS)
O ideograma wu-yu significa “sem-desejos” e representa o terceiro atributo do Caminho Imutável. Segundo Lao Tse, o estímulo dos desejos agita ao coração e no Capítulo LV, afirma:

”...Encher a vida até a borda é de mau agouro;agitar o coração leva-o à rigidez...
(Capítulo LV).


Por isso, no Capítulo II, Lao Tse recomenda:

...não excitar os desejos;
evita que o coração dos homens se agite...
(Capítulo II)


De acordo com Lao-Tse, a vontade de realizar os desejos almejados pela mente e pelo coração é a principal causa da agitação da mente e do coração e mesmo aquietando a mente, se há desejos não há quietude (hsu). Ademais, agitar a mente e o coração significa encher a vida até a borda o que exaure a vida. E aqueles que exaurem a vida morrem cedo.

...A simplicidade da madeira bruta (p’u) do sem nome (wu-ming) significa sem desejos (wu-yu).
Sem desejos (wu-yu) significa quietude (hsu)...
(Capítulo XXXVII)


Na alquimia interior de Lao-Tse, sem desejos wu-yu - o silêncio do coração - é o 3º e talvez mais difícil estagio no caminho de retorno ao Caminho Imutável. Na prática, esse é o 3º estagio para alcançar a quietude completa (hsu) da mente e do coração.


HSU (QUIETUDE, VAZÍO )
Segundo Wing Tsit Chan - A Source Book in Chinese Philosophy, Princeton University Press - “o termo hsu é um termo Taoísta, freqüentemente usado pelos neo-Confucionistas, que descreve um estado da mente de paz e pureza absoluta, livre de preocupações e desejos do ego, imperturbável aos estímulos, tanto exteriores quanto interiores”. De acordo com o texto de Lao Tse a quietude completa é o estado da mente e do coração que o Mestre deve alcançar para retornar (fu) ao Caminho Imutável. O estado de quietude completa é alcançado através da prática dos três princípios: “sem nomes” (wu-ming), “sem ações (wu-wei), e “sem desejos” (wu-yu). E por quê é tão fundamental alcançar o estado de quietude completa? Porque alcançando o estado de quietude completa se detém o processo que exaure a vida e leva a morte. São as palavras (ming), as ações (wei) e os desejos (yu) que agitam a mente e o coração do homem e que acabam exaurindo a vida, e quando a vida se exaure o homem é renovado. As plavras, as ações e os desejos são contrários ao Tao - que não fala, não age e não deseja - e tudo o que é contrário ao Tao morre cedo.

Alcança a quietude (hsu) completa.
Mantêm a tranqüilidade perfeita.
As dez mil coisas entram na existência (yu)
e depois as vemos retornar (fu).
Contempla as coisas que florescem,
cada qual retorna à origem.
Retornar à origem significa quietude.
Quietude significa retornar ao destino.
Retornar ao destino significa imutável (ch’ang).
Praticar o imutável é chamado iluminação.
Não praticar o imutável leva à desgraça...
(Capítulo XVI)


... Encher a vida até a borda é de mau agouro;
agitar o coração (hsin) leva-o à rigidez;
quando as coisas alcançam o apogeu começam a declinar.
Tais ações são contrárias ao Caminho (Tao) e tudo que é contrário
ao Caminho (Tao) morre cedo.
(Capítulo LV)


...Aqueles que praticavam o Caminho (Tao) não tentavam se
encher até a borda;
e porque não tentavam se encher até a borda não se exauriam,
evitando assim de serem renovados.
(CAPÍTULO XV)


CHING (ESSÊNCIA VITAL)
CH’I (ENERGIA VITAL)

No texto do Lao-tse, quando o ideograma hsu (vazio) aparece associado ao ideograma hsin significa esvaziar a mente e o coração. È claro que, além da quietude completa, algumas técnicas ancestrais também ajudam a destilar o elixir da imortalidade. Lao Tse faz referência a algumas dessas técnicas já no Capítulo III, porém de uma forma bastante hermética::

...Assim, o Mestre governa:
esvaziando a mente e o coração (hsu-hsin);
enchendo o ventre;
enfraquecendo as vontades;
fortalecendo os ossos...
(Capítulo III)


No primeiro verso “governa” significa regular certos princípios. No segundo verso Lao-Tse se refere aos três princípios da alquimia interior – wu-ming, wu-wei e wu-yu através dos quais é possível esvaziar a mente e o coração de forma a alcançar o estado de quietude completa. O terceiro verso faz alusão a uma técnica respiratória que consiste em concentrar a energia vital (ch’i) num ponto situado dois dedos abaixo do umbigo (tan t’ien inferior). Depois de muito praticar, a energia vital acumulada no tan t’ien inferior começa a subir pelo canal do controle (tu mo), até chegar ao cérebro (ni wan), para depois descer pelo canal da função (jen mo) completando a Órbita Microcósmica. Os terceiro e quarto versos são referências aos ensinamentos expostos no Huang Ti Nei Ching Su Wên (O Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo), o mais antigo livro de medicina da humanidade. Nele, o mestre Ch’i Pó explica para o Imperador Amarelo que os desejos são regulados pelo baço- raiz da vida pós-natal-, enquanto que os ossos estão ligados ao sistema urogenital–raiz da vida pré-natal, que determina nossa vitalidade.. A intensidade dos desejos está relacionada de forma inversa à energia do baço. Por isso, se os desejos são muito intensos, eles absorvem a energia do baço, que pela sua vez, para compensar o desequilíbrio, absorve energia do sistema urogenital, diminuindo o nível de energia vital, reduzindo assim nossa vitalidade, e, conseqüentemente, nosso tempo de vida. Por outro lado, uma forma de aumentar nossa vitalidade é fortalecendo os ossos. Conforme foi exposto por Ch’i Pó no Nei Ching “fortalecer os ossos e o tutano é a base da própria vida”. O fortalecimento do tutano dos ossos é feito através da concentração do esperma (ching), evitando a ejaculação durante o ato sexual. Assim, no lugar de ser dispersa na ejaculação, a energia concentrada no esperma produzido durante o ato sexual é purificada fazendo-a circular pela Órbita Microcósmica e acumulada no Tan T’ien inferior onde se transmuta em vitalidade. Este cinco versos formam um dos pilares sobre os quais foi construído o sistema Taoísta.

Lao-tse considerava o uso e abuso dos órgãos dos sentidos, o engajamento em atividades que estimulassem a luxuria e o prazer, e a cobiça e o acúmulo de riqueza, atividades que representavam grandes perigos para a saúde e a longevidade da pessoa, já que através dessas portas se dissipa e se exaure a energia vital. Assim, ele não se cansa de alertar sobre esses perigos, recomendando sempre a atitude introspectiva e a concentração da energia vital (C'hi) no ventre (Tan T'ien), como forma de preservar a saúde e prolongar a vida.

As cinco cores cegam os olhos do homem.
Os cinco sons ensurdecem os ouvidos do homem.
Os cinco sabores estragam o paladar do homem.
Corridas e caçadas agitam a mente e o coração do homem.
Objetos de valor prejudicam a conduta do homem.
Assim, o Mestre se ocupa com o ventre
e não com os olhos.
Ele aceita isto e rejeita aquilo.
(Capítulo XII)


Lao Tse considera que os benefícios do cultivo da energia vital e da prática introspectiva conferem a seu praticante os poderes do Caminho Imutável.

...Fecha a boca;
tranca as portas;
apara as arestas;
desata os nós;
abaixa a luz;
se torna um com a poeira;
isso se chama “Acordo Misterioso”.
Aquele que o alcançou,
não pode ser aceito nem rejeitado;
não pode ser favorecido nem prejudicado;
não pode ser elogiado nem humilhado.
Eis porque ele é o mais valioso dos homens sob o Céu.
(Capítulo LVI)


“Fecha a boca”, refere-se à técnica de cultivo da energia vital Taoísta, que consiste em se sentar com as pernas cruzadas, fechar a boca, colocar a língua no céu da boca (palato), colocar a palma da mão direita (yin) virada para acima encima da palma da mão esquerda (yang) também virada para cima, fechar o círculo de circulação de energia do corpo encostando a ponta do polegar da mão direita na ponta do polegar da mão esquerda, e finalmente, começar a respirar pausadamente pelo nariz com os olhos ligeiramente entreabertos fixados na ponta do nariz. “Tranca as portas” é uma alusão ao fechamento dos órgãos dos sentidos, olhos, ouvidos, paladar, nariz e tato, para os estímulos exteriores. Na prática da órbita Microcósmica e Macrocósmica Taoísta deve-se manter os olhos entreabertos olhando a ponta do nariz; na meditação Budista Ch’an deve-se virar a audição para dentro, como foi recomendado pelo Bodisatva Avalokitesvara (Kuan Yin) no Surangama Sutra. “Apara as arestas, desata os nós, abaixa a luz, se torna um com a poeira”, é uma descrição dos poderes do Ch’an Tao, que o alquimista interior adquire através da quietude da mente e do coração (hsu hsin)“Isso se chama Acordo Misterioso”, refere-se ao momento em que o alquimista interior alcança o estado de quietude completa depois de esvaziar a mente e o coração. “Aquele que o alcançou, não pode ser aceito (yang) nem rejeitado (yin); não pode ser favorecido (yang) nem prejudicado (yin); não pode ser elogiado (yang) nem humilhado (yin)”, significa que o alquimista interior superou a dualidade alcançando a Unidade ou estado imutável , transcendendo assim o estado de mutação que é a alternância da energia Yin e da energia Yang, as duas manifestações da energia primordial. Quando a energia primordial em estado imutável se manifesta através da energia Yin e da energia Yang, começa um ciclo de movimento alternado de expansão e contração. Esse movimento cíclico consome a energia vital, e uma vez alcançado o apogeu começa a declinar, exaurindo-se completamente. A alquimia de Lao Tse consiste, por um lado em não exaurir a energia vital agitando a mente e o coração; e, por outro lado, em acumular a energia vital através da circulação das órbitas Micro e Macrocósmicas. Assim, o alquimista interior deve transcender o ciclo de alternância do Yin e do Yang, tornando-se imutável (Ch'ang), que é a principal característica do Caminho (Tao) de Lao Tse. Quando o alquimista interior se torna imutável ele detém o processo de exaustão da energia vital e alcança a imortalidade.

FU (RETORNO)
SU (PUREZA DA SEDA CRUA)
P’U (SIMPLICIDADE DA MADEIRA BRUTA)

Ao observar o movimento do Tao, Lao--Tse percebe que o retorno (fu) é o movimento do Tao.

O retorno é o movimento do Tao.
A fraqueza é a ação do Tao.
As dez mil coisas surgem da existência (yu);
a existência surge da não- existência (wu).
(Capítulo XL)


Fu é o movimento de retorno natural e espontâneo (tzu-jan) de todas as coisas ao estado imutável e não há nada que possa deter ou alterar esse destino (ming). Lutar contra o retorno é contrário ao Tao e “tudo o que é contrário ao Tao tem vida curta” (Capítulo LV). Então, em lugar de passar a vida inteira lutando contra o movimento do Tao- o que certamente encurta a vida - melhor seria se harmonizar com esse movimento de retorno e aprender a controlá-lo, o que seguramente irá a prolongar o tempo de vida.

Entretanto, se harmonizar com o movimento do Tao, embora simples, não é nada fácil. É simples porque requer colocar em prática os conhecimentos que são obtidos através da simples observação do modus operandi da Natureza. Nada fácil porque a prática desses conhecimentos exige um movimento oposto –involução- á direção na qual estávamos nos movimentando, até o instante em que decidimos nos harmonizar com o Tao. Assim, Lao-Tse recomenda ao Mestre:

...Se após essas atitudes a vida se tornou insípida, procura:
a pureza da seda crua (su);
a simplicidade da madeira bruta (p’u);
o esquecimento de si mesmo;
ter poucos desejos (kua-yu).
(Capítulo XIX)


É claro que para seguir o caminho oposto imposto pela Sociedade é necessário adotar medidas radicais. Assim, após propor o abandono dos princípios tradicionais e dos conhecimentos ensinados por Confúcio (Kung- Tse) e por Mêncio (Mo-Tse), Lao Tse recorre às metáforas da seda crua (su) e da madeira bruta (p’u) para expressar a idéia de uma mente e de um coração em estado de simplicidade e pureza comparáveis aos do bebê quando nasce; ou seja, um retorno (fu) à consciência original . Mais qual seria a razão de abandonar os princípios tradicionais que tanto contribuíram para que a Sociedade alcançasse o atual estagio de desenvolvimento e voltar para um estado de consciência aparentemente similar ao dos homens das cavernas? Para explicar essa decisão, Lao-Tse utiliza precisamente a metáfora do bebê que na sua inocência tem uma proteção natural das forças da Natureza e ao mesmo tempo a maior vitalidade; sendo, portanto, aquele que tem a possibilidade de viver mais tempo.

Aquele que alcançou o Te(Poder)é como um bebê.
Os insetos venenosos não o picam;
as feras não o ferem;
e as aves de rapina não o atacam.
Seus ossos são brandos;
seus tendões maleáveis;
mas seu aperto de mão é firme.
Nada sabe sobre a união do homem e da mulher,
mas seu membro fica teso;
significa que a sua vitalidade está no auge.
Chora o dia inteiro sem ficar rouco;
significa que a harmonia é perfeita
Alcançar a harmonia significa estar de acordo com o que é imutável
Estar de acordo com o que é imutável é iluminação.
Encher a vida até a borda é de mau agouro;
agitar o coração leva-o à rigidez;
quando as coisas alcançam o apogeu começam a declinar.
Tais ações são contrárias ao Tao (Caminho) e tudo que é contrário
ao Tao morre cedo.
(Capítulo LV)


KUNG-AN (O PARADOXO)
O primeiro paradoxo é o do próprio livro, pois, como poderia um mestre que ensina a doutrina sem palavras escrever um livro sobre a própria doutrina? Esse paradoxo é esclarecido pelo depoimento do primeiro e mais importante historiador da China Antiga, Ssu-ma-Chien (145-86?): “Lao-Tan (Lao-tse) continuou vivendo em Chu, mas depois de algum tempo, vendo a decadência da dinastia Chou resolveu abandonar o reino e recluir-se nas montanhas. Yin-hsi, o guarda da fronteira, percebendo que o grande mestre pretendia desaparecer, condicionou a sua passagem à composição de um livro que deixasse registrados os principais conceitos de sua doutrina. Assim, o velho sábio não teve outra opção a não ser escrever em apenas uma noite um livro de mais de cinco mil ideogramas, onde expôs os princípios do Caminho (Tao) e do Poder (Te). No dia seguinte, atravessou a fronteira e ninguém sabe quando morreu. Ele era um homem superior que gostava de permanecer no anonimato”.

Já os paradoxos do texto são mais difíceis de resolver já que tem por objetivo confrontar o adepto com uma situação contraditória, de forma que ele possa perceber a inutilidade do intelecto para alcançar Caminho Imutável.

Por exemplo, os paradoxos do capítulo XXVI, “o caminhante perfeito não deixa pegadas”; “o discurso perfeito não tem palavras”; e, “a porta perfeitamente trancada não tem tranca e mesmo assim ninguém consegue abri-la”; refere-se a agir sem agir (wei-wu-wei), a falar sem palavras (ming-wu-ming) e a desejar sem desejos (yu-wu-yu), que são os três princípios da alquimia de Lao-Tse para alcançar a quietude da mente e do coração. É claro que essas e outras passagens do texto, se interpretadas literalmente, podem dar a idéia de poderes sobrenaturais ou feitos mágicos e talvez tenha sido essa a razão pela qual algumas seitas do Taoísmo popular desenvolveram a magia negra e a alquimia inferior; porém, cometeram tantos excessos que acabaram no descrédito e suas práticas tachadas de puro charlatanismo.

Alguns séculos mais tarde, o Kung-an se tornou o método de iluminação da Escola Lin Ch’i, principal seita do Budismo Ch’an. Quando o mestre achava que o discípulo estava pronto lhe dava um paradoxo para resolver, como por exemplo: “Todas as coisas retornam para o Tao, mais para onde retorna o Tao?" Enquanto não o resolvesse, o discípulo devia manter o paradoxo permanentemente na mente de manhã, de tarde e de noite, andando, parado, sentado ou deitado. Essa prática de purificar e aquietar a mente através do paradoxo o tempo todo fazia com que chegasse um momento em que o discípulo estava pronto para a iluminação (wu). No instante que o mestre percebia o estado iminente de iluminação do discípulo ela acionava uma causa contribuinte, tal como um estalo dos dedos, um beliscão, ou um grito. Naquele instante, o discípulo acordava para a realidade última e alcançava a iluminação (wu).

O COMPLEMENTO DOS OPOSTOS
Pode-se dizer que a dialética dominou o pensamento da China Antiga e é tão remota como o aparecimento da própria consciência humana. O modelo antitético nasceu da simples observação da Natureza e o primeiro exemplo através do qual o ser humano provavelmente tomou consciência do complemento dos opostos foi o homem (yang) e a mulher (yin). A alternância dos opostos certamente foi logo constatada através do dia (yang) e da noite (yin).

Lao-Tse usa e abusa da dialética e embora Arthur Waley tenha constatado que os termos yin e yang são mencionados apenas três vezes, nada menos do que vinte e cinco exemplos antitéticos são apresentados no texto. Já no Capítulo II, Lao-Tse utiliza a dialética com o objetivo de mostrar como a ação da mente é responsável pela transformação da Unidade (imutável) na Dualidade (mutável):

Quando todos os seres sob o Céu julgam o belo (yang) como belo
é aí que surge o feio (yin);
quando todos os seres sob o Céu julgam o bem como bem (yang)
e aí que surge o mal (yin)...
(Capítulo II)


Desta forma Lao-Tse procura nos mostrar que os opostos não são dois princípios irredutíveis e sim as metades complementares de um único princípio, fundamento que permeia o pensamento chinês desde os primórdios de sua civilização e cuja assimilação se constitui no maior desafio para nossa mentalidade judaico-cristá, que tende a considerar o bem e o mal como dois princípios irredutíveis.

Ao longo do texto, vários outros exemplos antitéticos são expostos com o intuito de demonstrar que os opostos, na realidade, pertencem ao mesmo princípio, sendo, portanto, complementares. Note-se que no Capítulo LXXVI, a noção de complementaridade se estabelece em relação à substância e à função, no que poderia ser interpretado como um sinal da influencia da filosofia budista.

...A não-existência (yin) e a existência (yang) geram-se mutuamente;
o fácil (yin) e o difícil (yang) completam-se mutuamente;
o curto (yin) e o longo (yang) contrastam mutuamente;
o baixo (yin) e o alto (yang) determinam-se mutuamente;
o silêncio (yin) e o som (yang) harmonizam-se mutuamente;
o antes (yin) e o depois (yang) seguem-se mutuamente...
(Capítulo II)


Quando os homens nascem (yang), são brandos e maleáveis (yin);
quando morrem (yin), tornam-se duros e rígidos (yang).
Quando as plantas têm vida (yang), são tenras e frágeis (yin);
quando morrem (yin), tornam-se quebradiças e secas (yang).
Assim, os duros e rígidos (yang) são “companheiros da morte” (yin);
e os brandos e maleáveis (yin) são “companheiros da vida”(yang).
Diz o ditado: “a lâmina demasiado rígida (yang) se partirá” (yin);
e “a árvore mais dura (yang) será cortada” (yin).
Eis porque os duros e rígidos (yang)são derrubados (yin);
e os brandos e maleáveis (yin) permanecem no alto (yang).
(Capítulo LXXVI)



A ALTERNÂNCIA DOS OPOSTOS
Para Lao-Tse, os opostos gerados pela divisão da unidade em dualidade não apenas contêm o principio de complementaridade, como que também contêm um outro principio fundamental: o movimento de alternância. O principio de alternância é um dos pilares sobre o qual se apóia o Clássico das Mutações (I Ching). No primeiro parágrafo do Capitulo V do “Grande Tratado” (Ta Chuan), diz: “Ora Yang, ora Yin, esse é o Tao”. Essa afirmação contida no I Ching sugere que o Tao é é um movimento cíclico e permanente de alternãncia dos opostos, determinado pela expansão e contração, ora do princípio Yang, que vira Yin, ora do princípio Yin, que vira Yang. Porém, Lao Tse utiliza o princípio da alternância dos opostos para mostrar que a estratégia de procurar o Yang - atitude característica da mentalidade Ocidental – na realidade conduz ao resultado contrário, pois o que se obtém é o Yin.

Aquele que alimenta a vida em excesso (yang) encontra a morte (yin)...
(Capitulo L)


...Quando as coisas alcançam o apogeu (yang) começam a declinar... (yin)
(Capítulo LII)


Para contraí-lo (yin), é necessário primeiro expandi-lo (yang);
para enfraquecê-lo (yin), é necessário primeiro fortalecê-lo (yang);
para destituí-lo (yin) é necessário primeiro promovê-lo (yang);
para tirar-lhe (yin) é necessário primeiro dar-lhe (yang).
Isso se chama: “obscurecer a própria luz”...
(Capitulo XXXVI)


A SUPREMACIA DO YIN SOBRE O YANG
Desta forma, quando Lao Tse observa a ação da Natureza, ele constata que a alternância do Yin e do Yang não é igual, como sugere a afirmação encontrada no primeiro parágrafo do Capitulo V do “Grande Tratado” (Ta Chuan) : “Ora Yang, ora Yin, esse é o Tao”. Essa afirmação sugere que a chance de alternância de Yang para Yin e de Yin para Yang é de 50%. Entretanto, quando usamos o método tradicional de consulta ao I Ching com as varetas de milefólio, verificamos que a probabilidade matemática de uma linha Yang se transformar numa linha Yin é de 75%, enquanto que a probabilidade matemática de uma linha Yin se transformar numa linha Yang é de apenas 25%. Essa relação de probabilidades mostra claramente que, no caso de consulta tradicional pelo método das varetas, o movimento de alternância dos opostos no I Ching tem uma forte tendência para o Yin. No Tao Te Ching, Lao Tse expõe claramente essa tendência.

...O brando (Yin) vence o duro (Yang) e o maleável (Yin) o rígido (Yang)...
(Capitulo XXXVI)


Não há nada mais brando (yin) e maleável (yin) que a água (yin),
mas nada há de melhor para vencer as coisas duras (yang) e rígidas (yang).
Por isso, é insubstituível.
Todos sabem que o brando (yin) vence o duro (yang) e que o maleável (yin)
vence o rígido (yang), mas ninguém o pratica...
(Capitulo LXXVIII)


A ESTRATÉGIA: AÇÃO YIN, EFEITO YANG
Esta tendência para o princípio Yin mostrada pela ação da natureza leva Lao Tse a elaborar uma estratégia que com o passar do tempo se constituiria num dos pilares fundamentais do Taoismo e tal vez tenha sido a característica mais marcante da idiossincrasia do povo chinês: a ação Yin para conseguir um resultado Yang. Desta forma, utilizando o próprio modelo da Natureza, Lao-Tse nos aconselha:

Sê maleável (yin) e te conservarás inteiro (yang).
Enverga-te (yin) e ficarás ereto (yang).
Esvazia-te (yin) e serás repleto (yang).
Exaure-te (yin) e serás renovado (yang)...
(Capítulo XXII)


Aquele que conhece a atitude do macho (yang), mas segue o modelo da fêmea (yin),
é como o vale (yin) do Império.
Sendo como o vale do império alcança o Poder Imutável (Ch’ang-Te) e retorna à infância (yin).
Aquele que conhece a luminosidade (yang), mas segue o modelo da obscuridade (yin),
é como o vale (yin) do Império.
Sendo como o vale do império não se desvia do Poder Imutável
e retorna à não-existência (yin).
Aquele que conhece a glória (yang), mas segue o modelo do anonimato (yin),
é como o vale do Império.
Sendo como o vale do Império não se afasta do Poder Imutável
e retorna à simplicidade da madeira bruta (yin)...
(Capítulo XXVIII)

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